domingo, 31 de janeiro de 2010

O "Admirável Mundo Novo" de António Barreto



À proposta de António Barreto de entrega do ensino básico e secundário ao poder local, a resposta culta e lúcida de um encarregado de educação profundamente conhecedor da realidade social portuguesa:


A Educação em Portugal: O "Admirável Mundo Novo" de António Barreto

Salvador Costa


Numa recente entrevista António Barreto defendeu que a Educação em Portugal devia ser transferida para as escolas e as autarquias e o Ministério da Educação ter uma intervenção "residual": definir o currículo nacional e a fiscalização. E terminou a frase com: "ponto final".
Ou seja, António Barreto defende um modelo de escola-comunidade sem atender à realidade social do país:

1- Um dos aspectos fundamentais da qualidade do ensino público é o aprofundamento da autonomia da gestão e administração das escolas, assente em lideranças profissionalizadas e em contratos de autonomia celebrados com o Ministério da Educação.

2- A certificação de competências e o recrutamento de docentes centradas no Ministério da Educação e nas escolas (modelo actualmente vigente) de modo a assegurar o máximo de imparcialidade, qualidade e transparência nos critérios de selecção do corpo docente.

3- O reforço das competências e o alargamento da participação das associações de pais e encarregados de educação como parceiros educativos principais da gestão escolar.

4- Atendendo às fragilidades estruturais que caracterizam o poder local a nível da falta de eficácia da decisão administrativa e da corrupção (no seu sentido mais lato), proceder-se a uma profunda reforma da Administração Pública Local que assegure a eficácia da decisão administrativa, o rigor e qualidade da gestão dos serviços públicos, o reforço dos mecanismos de prevenção e penalização da corrupção e do enriquecimento ilícito.

5- Passar um "cheque em branco" para as autarquias em matéria tão nobre e importante para o país como é a Educação, é introduzir na gestão do sistema de ensino público factores de ineficácia e de eventual deturpação dos seus valores essenciais por motivos de ordem político-partidária, compadrio, tráfico de influências e outros desvios à racionalidade do sistema e à ética da actuação dos seus protagonistas.

6- Em termos organizacionais, António Barreto defende a transferência das competências da Educação de uma empresa estatal (Ministério da Educação) com uma estrutura hierárquica e de liderança consolidadas, um forte apoio logístico em termos de estabilidade financeira (orçamento do Estado), recursos humanos, tecnológicos e científicos, com uma responsabilidade social perfeitamente identificada em termos de missão e valores (Lei de Bases do Sistema Educativo); para "pequenas e médias empresas" (autarquias locais), com elevados níveis de endividamento, sem recursos humanos qualificados (salvo raras excepções), sem um compromisso ético assumido em termos de missão e valores, dependentes de programas político-partidários e de interesses das clientelas das lideranças locais. Sem um controlo eficaz e atempado da qualidade da gestão e da legalidade das decisões tomadas na área da Educação.

7- As fragilidades do modelo defendido por António Barreto face ao país real, passo a enumerar com conhecimento pessoal e documentado a título de cidadão e encarregado de educação.
Dr. António Barreto, neste Portugal democrático, de que V. Exa. é um dos principais estudiosos sociais, nesta data em que se comemora a Implantação da República em Portugal, a aplicação do seu modelo de escola-comunidade trouxe as seguintes inovações ao sistema de ensino público:

Há alunos que pagam o preço legal da refeição escolar, outros pagam um preço inferior, outros estão isentos do pagamento de qualquer valor, tudo depende da vontade, sensibilidade e oportunismo político dos autarcas. Há alunos a quem lhes é servido uma única salsicha acompanhada de arroz, ou somente metade de uma peça de fruta porque o autarca em questão poupa na alimentação das crianças para fazer obras ou eventualmente para benefício pessoal. Funcionárias de cantinas escolares com contratos precários e salários em atraso. Subsídios de material escolar que só são entregues em meados do segundo período escolar, enquanto há autarquias que pagam a totalidade dos manuais escolares dos alunos, independentemente do rendimento do seu agregado familiar.
Escolas que funcionam em situações precárias ou mesmo sem as devidas condições de segurança porque as funcionárias contratadas pela autarquia ou são em número insuficiente para o número de alunos ou com reduzido horário de trabalho (quatro horas por dia). Há alunos do primeiro ciclo que não têm Inglês porque a professora contratada está de baixa por motivo de licença de maternidade e a autarquia não recruta uma professora de substituição. Há alunos que passam frio durante dias seguidos porque há um litígio pessoal ou político entre o presidente da junta de freguesia que gere as instalações da escola e o presidente da câmara ou o vereador da educação.
Há professores que são contratados para as actividades extra-curriculares em que são apontadas razões de favorecimento por motivos pessoais ou políticos em relação a candidatos mais qualificados e experientes.
Há associações de pais e encarregados de educação que sofrem pressões e boicote para impedir a sua legítima representação nos órgãos locais que tratam assuntos da área da educação (CPCJ, CME) em que a súmula dos elementos que os constituem, tirando os legítimos parceiros sociais afectos ao Poder Central, são os comissários políticos, os amigos e a clientela da liderança autárquica.

É este o Admirável Mundo Novo do modelo da escola-comunidade que defende António Barreto.

8- Sem que os pais e encarregados de educação tenham a liberdade de escolha da escola em que pretendem inscrever os educandos, ficando assim reféns de um bom ou mau mandato autárquico a nível da gestão das questões da Educação.

9- Criando por todos os factos acima enunciados, manifestas condições de desigualdade e ineficácia no sistema de ensino público, pela sua eventual subordinação aos interesses das lideranças político partidárias locais e respectivas clientelas.

10- Esperemos que outros, tenham o bom senso de efectuar um profundo e detalhado estudo da realidade política e social da Administração Pública Local de modo a assegurar o futuro do país por um sistema de ensino público de qualidade. E não tentar adoptar um modelo teórico de sistema de ensino que na prática, no estado de desenvolvimento colectivo do país, pode redundar num tremendo disparate.

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